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31/08/2014: "Da generosidade do amor"

Comentário ao Evangelho da 22ª Semana do Tempo Comum: Mt 16,21-27

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Talvez, nunca como hoje se tenha vivido sob o apelo tão reiterado e urgente de escolher.  Escolhe-se tudo. Desde a cor do sapato a ser comprado ao curso superior e os planos de futuro, dos valores pessoais à ética política, das disposições dos compromissos na agenda ao lugar no coração dedicado àqueles que nos rodeiam, tudo parece colocado à mercê da escolha e da vontade de cada um. “Nunca fomos tão livres” – há quem arrisque. Porém, não se corre o risco de, na euforia da sensação de liberdade, desatentar-se para as mordazes prisões de nossos desejos mais arbitrários? Ou, na afirmação imperativa da própria vontade, descuidarmo-nos da vontade do outro que nos interpela? Acaso não seria este o mais sutil e eficaz instrumento de controle: a dominação das vontades sob a falsa sensação de liberdade, de tal sorte que os dominados não só obedeçam, mas cheguem a sentir gratidão pelos algozes que os agrilhoam?

Entre os enganos a que todos estamos sujeitos, um parece ser mesmo este: o da ilusória possibilidade de escolher tudo, de determinar tudo, de selecionar todas as experiências a serem vividas. Quantos, diante de uma situação de adversidade, não se veem atravessados por uma recusa de aceitação? “Não aceito que isso tenha ocorrido”, ou “não me conformo que isso tenha acontecido exatamente comigo ou com aquele que eu amo”. Outros não expressam assim sua recusa, mas se entregam a experiências religiosas que apelam ao “pare de sofrer” ou “ainda que você chore, Deus te quer sorrindo”.

Acontece, porém, que essa escolha absoluta não nos é possível. A vida se compõe de escolhas, que devem ser feitas com responsabilidade, mas também de oportunidades que se dão, de ocorrências fortuitas, como também de desgraças imprevisíveis e fatalidades anunciadas. Como o avesso e o direito de uma mesma trama, a vida se tece das conquistas e dos fracassos, dos acertos e dos erros, da saúde e da doença, da alegria e do sofrimento. E viver significa exatamente atravessar as experiências humanas com toda a intensidade que elas exigem de nós, sorvendo até a última gota de cada alegria e cada descontentamento, tocando a profundidade da realização e da frustração. Apropriar-se verdadeiramente e viver inteiramente e ao mesmo tempo o “sopro de Deus” e o “pó da terra” de que somos feitos – nisso consiste nossa vocação humana.

Jesus, autenticamente humano, assumiu sem reservas essa nossa condição, nossa errância pelos caminhos incertos da vida e nossa esperança de chegar à plena realização de nós mesmos. Assumiu com humana dignidade os prazeres e as angústias da existência. Riu e chorou, aceitou e contestou, aprendeu e ensinou. E, quando a vida lhe pediu contas através do sofrimento, soube sofrer a mais humana de todas as dores: a morte. Mas, mais que isso, Jesus nos revelou algo a mais: que a palavra de Deus pode nos arrastar por caminhos nunca previstos e modificar com agrado, qual amante sedutor, nossos planos de futuro; que mesmo a incerteza e a angústia podem se iluminar pela luz da fé; e que até o sofrimento e a morte podem se converter em entrega, quando vividos com fidelidade e sentido. A partir de Jesus, vida é mais do que a fugaz existência e suas pequeninas realizações, mas a capacidade de “gastar-se”, “consumir-se”, “entregar-se”. Com Jesus, aprendemos que não é na afirmação absoluta de si mesmo que reside a realização e a felicidade, mas na realização que convida também outros a se realizarem e na felicidade de fazer outros também felizes. Nesse sentido, diz o Evangelho: “quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la” (Mt 16,25). Nas sendas profundas da existência, não há lugar para negociação, nem escusa, nem barganha, nem troca. Definitivamente, nada pode ser trocado pela vida. Mas muito pode ser resgatado pela entrega generosa de si mesmo. Mais do que um “anúncio da Paixão”, o texto deste domingo oferece uma interpretação, um sentido da Paixão de Jesus: a tragédia da morte assumida e vivida como derradeira e radical entrega de si mesmo.

Que a palavra de Deus seja para nós fonte daquela gratuita alegria que se divide, daquela fecunda realização que entusiasma, daquela felicidade que convida à entrega gratuita de si mesmo. E, se tudo isso exigir de nós algum sacrifício, fica por conta da generosidade do amor.

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Por, Frei João Júnior ofmcap

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