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30/10/2016: “Paradoxal humanidade”

Comentário ao Evangelho do 31º Domingo do Tempo Comum: Lc 19, 1-10

 

Olhando para o caos do nosso tempo, há quem tenha saudade de quando as coisas eram mais simples de se compreender. Afinal, num passado até bem próximo, parecia mais fácil diagnosticar os problemas, encontrar as soluções, propor os caminhos, ditar o rumo da própria vida. Os valores se punham com muita clareza, os agentes da política pareciam ter papeis bem definidos, a palavra da autoridade soava legítima e assertiva, os lugares sociais que ocupávamos já diziam muito sobre nós… enfim, o mundo parecia mais organizado – e funcionava, dizem alguns. Mas o nosso tempo descobriu que as coisas são sempre mais complexas do que parecem à primeira vista. Um mesmo valor pode ser vivido como possibilidade de libertação ou como aprisionamento opressor, ou uma mesma palavra da autoridade pode convidar à autonomia ou soterrar no terror da dependência, por exemplo. Descobrimos que a verdade de uma religião pode não ser a única verdade – e que pode até ser mentira; descobrimos que a legenda de um partido pode não dizer toda sua ideologia ou não descrever seus reais compromissos; descobrimos que o sexo biológico pode não determinar o lugar de uma pessoa no mundo das significações e dos afetos; descobrimos que cada um de nós é um universo de intimidade e sacralidade, não disponível ao simplismo das rotulações. Enfim, para além de nossas concordâncias ou simpatias, um mundo muito diferente e muito mais emaranhado se descortinou e se impôs como real.

Não é de se estranhar, portanto, que num cenário de tanta novidade e de tanta incerteza, a primeira tentação seja a de retornar às antigas etiquetas, que classificavam e organizavam em gavetas o mundo que conhecíamos – e que funcionaram por tanto tempo. Impor ao complexo a simplicidade do “certo” ou “errado”; emoldurar o distinto com a duplicidade de “sim” e “não”; reduzir o novo à rasa opinião do “sou contra” ou “sou a favor”… são todas expressões da mesma tentação de rejeição sumária do nosso tempo, em prol de um mundo que era melhor – ou que pintamos com cores douradas para reprovar o tempo presente. E, não satisfeitos, estendemos a Deus mesmo a simplicidade de nossas categorias, buscando nele a segurança de nossas opiniões: o que Deus ama e o que ele não ama; o que ele aprova e o que ele reprova, o que ele quer e o que ele não quer, o que ele salva e o que ele condena. Para quem organiza o mundo dessa maneira simplista, o evangelho deste domingo pode parecer particularmente perturbador.

Jesus entra em Jericó e atravessa a cidade, a mesma que na narrativa de Josué havia sido tomada após a queda de seus muros. Se os antigos a rodearam insistentes para tomá-la de assalto, Jesus entra e a atravessa para atingir-lhe o coração. Havia ali um homem, descrito simultaneamente como pequeno e como grande. Pequeno na estatura, grande no poder; pequeno no amor que dedicava a todos, grande na avareza com a qual devorava tudo; pequeno no respeito que tinha de seus concidadãos, grande na riqueza que lhe garantia posição diante deles. Um chefe, diz o texto. Mas não um líder que encoraja e incentiva; um chefe na ingrata e lucrativa tarefa de exercer o domínio econômico em nome de Roma. Paradoxalmente, Zaqueu era um chefe na traição. O que por si só, já faz perguntar: o que, de fato, torna alguém pequeno ou grande? O que agiganta o coração e o que apequena a alma de um ser humano? O que alarga a estatura e o que diminui a integridade de uma pessoa? Pequeno nos meios, grande nos desejos: Zaqueu queria ver quem era Jesus, mas não podia. Ou queria conhecê-lo, mas não se atrevia? Ou queria compreendê-lo, mas não conseguia? Era sua pequena estatura o impedia de ver Jesus ou era sua pequenez de alma não o permitia crer nele?

O paradoxo aumenta, pois esse homem pequeno surpreende e vai além da própria pequenez. Sobe numa figueira, diz o texto, para ver Jesus passar. A bíblia está repleta de figueiras. Uma árvore muito simbólica, pois representa Israel, ou as Escrituras, ou o templo… – que devem dar fruto até fora do tempo, o ano inteiro. Afinal, Zaqueu subiu numa árvore ou tomou assento nas palavras de Jesus? Achegou-se num galho de árvore, ou na sombra da cruz do Senhor? Queria vê-lo passar ou desconcertou-se quando Jesus passou pelos caminhos de sua história?

Jesus passa, olha para cima e vê Zaqueu. Paradoxais esses olhares. Pois aquele, o chefe baixinho que se acostumara a ser olhado desde cima (mas por olhos que o invejavam desde baixo), é agora olhado desde baixo (por um olhar que seduz e convida desde cima). Tanto que Zaqueu não resiste ao convite: “Desce daí, pois devo ficar eu tua casa”. Prontamente, recebe Jesus com alegria – aquela alegria que nem toda a riqueza lhe dera. Pois, enquanto o pequeno Zaqueu roubava de seus irmãos as condições de vida, as riquezas lhe roubavam a grandeza de viver.

O paradoxo se radicaliza. Enquanto os demasiado bons recriminam Jesus, apequenando seu coração pela presunção, o pequeno homem reconhece a grandeza de seus pecados e a reverte em largueza de generosidade. E enquanto os “santos” se apegam à Lei para se proteger, o “pecador” vai além da Lei e devolve muito mais do que a Lei exige. No fim, quem é grande e quem é pequeno neste texto? Para Jesus, não há dúvida: “este homem – Zaqueu – é um filho de Abraão”. Somente um coração generoso (tão farto no amor quanto tiver sido farto no pecado) pode ser filho de Abraão, pois quem tem coração pequeno não pode ser herdeiro daquele que se tornou “pai de uma multidão”.

Talvez, o evangelho deste domingo possa nos recordar um traço de nossa humanidade que nosso tempo finalmente redescobriu: o paradoxo. Porque, no fundo, lá nos segredos do coração onde Deus mora, tudo será sempre muito mais complexo do que parece. E os abismos de nós mesmos, de nossas intenções e interesses, de nossos desejos e amores, de nossas buscas e sonhos, serão sempre meio misteriosos até para nós mesmos. Quem sabe, reconhecendo o mistério incerto que nos habita, sejamos mais compreensivos com os paradoxos de nosso mundo e de nossos irmãos, sabendo ouvir a legitimidade de seus clamores. Mais lentos no julgar que rotula do que no amor que acolhe. E que, acima de tudo, saibamos que Deus nos ama, a partir de nossos paradoxos, de nossas próprias incompreensões, não raro nos surpreendendo com um olhar igualmente paradoxal e inaudito, com um encontro inesperado aos pés de uma figueira, ou hospedado em nossa casa, nos convidando à entrega do amor e à liberdade da generosidade.

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Por, Frei João Júnior ofmcap

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