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20/03/2016: “À frente…”

Comentário ao Evangelho do Domingo de Ramos: Lucas 23,1-49

Domingo-de-Ramos

Em 1895, o médico e sociólogo francês Gustave Le Bon publicou um livro chamado ‘A Psicologia das Massas’. A análise que faz no livro se fundamenta na psicologia social e argumenta que quando um indivíduo participa de uma massa, deixa de ser si-próprio e passa a fazer parte do que o autor chamou de “alma da massa” – uma espécie de espírito coletivo. A psicologia social mais atual não descuidou desse assunto e recentes pesquisas provam o quanto o Pensamento de Grupo (Group Thought) desresponsabiliza o indivíduo, que se deixa levar, que assume facilmente propostas que a maioria vai assentindo sem questionar, que apoia o consenso, mesmo sem muita atenção às suas premissas.

Muitos filósofos se debruçaram sobre o fenômeno das massas sob vários prismas, como por exemplo, o viés da manipulação cultural e instrumentalização da paixão de uma multidão para a manutenção/destituição do poder; o viés dos comunitarismos de evento e tribalismos crescentes em nossas sociedades tão diversificadas; o viés da religiosidade e suas expressões culturais, históricas e rituais. Tais análises envolvem cruzamentos de conhecimentos múltiplos. É como dizem: já analisamos demais… Se isso foi capaz de transformar alguma coisa é outra questão.

Vez ou outra as massas surgem, com um interesse harmônico ou falsamente único, defendendo um ideal, ou interesses particulares. Podem se caracterizar por ter proximidade física, como nas revoluções, mas também por não tê-la, como é o caso dos agrupamentos que vencem os espaços, graças às novas tecnologias. Nas turbas, um tipo de massa por proximidade física, unem-se pessoas conscientes e preparadas, mas também gente que “quer mudar o mundo” no berro. Enfim, talvez hoje uma massa não seja tão homogênea como antes. Le Bon, o francês de que falamos, não conhecia a radicalização do subjetivismo nem do relativismo quando falava de um espírito coletivo.

Os evangelhos que ouvimos nessa liturgia de hoje (Cf. Lc 19,28-40; Lc 22,14-23.56) jogam com duas imagens extremadas de massas. É a mesma massa que espremia Jesus no caminho para Jerusalém que grita, em seguida, pedindo sua crucifixão, pressionando o poder romano, aqui, tão fragilizado e amedrontado com os frêmitos de Revolução que começavam a insurgir.

Mas, em primeiro lugar, os agrupamentos em volta de Jesus lhe abriram passagem. Compreendendo o seu comprometimento com a pobreza mais radical, cobriram com mantos um jumentinho que Jesus pedira. Ajudaram-no na montaria, forraram o chão com vestes. Encheram-se de alegria, louvaram a Deus, porque reconheceram em Jesus a força de seus milagres. Tanto carisma no poder, seria a salvação de Israel. Finalmente havia chegado o Messias. Mas tão logo veem Jesus nas mãos daqueles que parecem deter o verdadeiro poder, decepcionam-se. Não vêm anjos, o céu não se abre em sua fúria, o Reino carismático e terapêutico de Jesus é estrangulado diante dos olhos crentes. Mistura-se a isso a trama macabra que fariseus e mestres da lei já haviam preparado, o burburinho de blasfêmia, as difamações cochichadas (o boca-a-boca era o meio de comunicação da época) e Jesus se encontra sem saída. Não demora muito e a multidão feliz, profética, muda de feições, tornando-se furiosa, caluniadora. Nem todos queriam a morte de Jesus ali, não há dúvidas. Apenas aguardavam, no calor do evento, a irrupção do Reino de que Jesus falava. Mas os gritos pela crucifixão foram uníssonos. Até hoje repetimos tais gritos, para mostrar que muitas vezes também nós nos deixamos levar irresponsavelmente pelo “bando”…

Lá está ele, entretanto. Quando a multidão o exalta, não se engana. Sua pobreza, sua opção irrevogável pela paz mantida em todos os traços da cena, será levada até o final, no alto da cruz. Sua firmeza de espírito está guardada, pois conhece a esperança de seu povo, mas não cede às ilusões de poder da maioria. Não se enquadra nas expectativas messiânicas da turba, mas ao menos reconhece sua expectativa; não lhes tira o direito de expressão. Ainda assim, não se deixa enganar por bajulações, endeusamentos falsos, por glórias artificiosas. Quando for desprezado, vexado publicamente, caluniado e pregado numa cruz, Jesus também não deixará sua postura de perdão e amor irrestrito.

O primeiro evangelho desse domingo, voltemos a ele, começa dizendo que Jesus “vai à frente…” (cf. Lc 19, 28). Esse ‘ir à frente’ é apenas um dado espacial desimportante, ou símbolo de uma ‘consciência’ que está à frente do tempo? De uma postura à frente da época? É tudo isso, mas principalmente, sinaliza a abertura de um novo horizonte que podemos seguir…

Colocar Jesus no poder: era o que a multidão queria. Perder poder: era o medo dos fariseus, mestres da lei e sumos-sacerdotes. Um motim contra o poder: era o que o frágil Pilatos temia. E Jesus, o que queria? Serviço, vida doada enquanto verdade libertadora, um mundo de irmãos… Em meio à inconstância das massas, um homem de envergadura, de verdadeira autoridade, de profundidade incomparável, de sensatez e sabedoria marcantes. Diante do movimento pendular das massas, ele mantém sua consistência, sua coluna; se mantém. Em resposta a todos nós, seja qual for nossa identificação, com qualquer grupo que seja, vemos nesses dois evangelhos do Domingo de Ramos, o homem que tem feito falta à nossa humanidade desbussolada.

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Por, Pe. Eduardo César

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