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13/03/2016: “Em vez de pedras…”

Comentário ao Evangelho do V Domingo da Quaresma: Jo 8-1-11

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“Deixar para trás o passado e olhar para frente”: um curioso convite sobre o qual insistem tanto a primeira leitura, do Profeta Isaías, quanto a segunda, de São Paulo aos Filipenses. Isso significaria esquecer a própria história, desprezando como desimportantes os caminhos já percorridos? Certamente que não. Pois o mesmo Isaías, que convida a olhar para frente, inicia exatamente recordando o dia em que Deus fez sair o seu povo do Egito. Também Paulo, antes de convidar a uma “corrida para frente”, recorda o quanto sua vida foi transformada pelo Senhor que, um dia, lhe apareceu no caminho Damasco e o fez cair com o rosto em terra. Que significaria, então, esse emblemático convite? Talvez, o Evangelho deste domingo ajude a compreender.

Um texto igualmente estranho este do Evangelho. Dizem os estudiosos que este pequeno relato já esteve em vários lugares do Evangelho de João. Já esteve também em Lucas. E houve até quem não o reconhecesse como legítimo… enfim, uma insegurança que deve ter suas razões. Primeiro, porque a cena de Jesus tomando o partido de uma adúltera (surpreendida em flagrante), desafiando com límpida clareza a Lei de Moisés, já era por si mesma embaraçosa. Se não para os primeiros, tornou-se embaraçosa depois, pois essa postura de Jesus lançaria uma perigosa suspeita sobre todas as leis – fossem elas humanas ou pretensamente divinas, promulgadas pelas autoridades civis ou pelas lideranças religiosas. Segundo, porque, ao que parece, esse texto passou a circular no momento em que muitos cristãos renegaram a fé durante as perseguições e depois, arrependidos, quiseram retornar às comunidades, colocando os irmãos num dilema cortante: como adúlteros da fé, esses traidores poderiam ser de novo admitidos? Haveria perdão para alguém que abandonou a comunidade em seus apuros, às vezes para salvar a própria pele, e se refugiou em meio às mentiras de uma fé falsa? Isso não os tornava semelhantes aos fornicadores, que abandonam o leito esponsal e se perdem na prostituição? Seria possível chamar novamente de “irmãos” a esses pérfidos desleais?

O cenário do texto é novelístico: na mesma noite, Jesus está no monte e, depois, no templo; a mulher está cometendo seu adultério; os acusadores de Jesus estão tramando. E, no encontro, ainda madrugada, essas consciências se porão às claras. A questão apresentada a Jesus é bastante simples – e por isso mesmo, muito capciosa: “a mulher foi flagrada em adultério e a Lei ordena seu apedrejamento. Que dizes tu?”. A pergunta sobre “o adúltero”, com quem a mulher teria cometido o adultério, nem aparece. Talvez, porque, segundo a mesma Lei de Moisés, o homem se enquadrasse em adultério apenas quando se relacionasse com uma mulher casada (ou seja, a traição em que um homem casado se envolvesse com uma mulher solteira não configurava propriamente adultério!); enquanto a mulher seria chamada adúltera quando se relacionasse com qualquer homem que não fosse seu marido.

“Que dizes tu?”. O crime é claro, o flagrante não deixa dúvidas, a Lei é explícita. Para a execução da pena, falta apenas uma perversidade a mais: colocar Jesus à prova. Ou seja, para os Mestres da Lei, não interessa aqui satisfazer a Lei, da qual são Mestres. Tampouco corrigir o pecado da mulher, que está diante deles. A um só tempo, instrumentalizam a Lei e a mulher para testar Jesus. E isto não é raro: que a instrumentalização da Escritura termine em abuso das pessoas; que ao uso interesseiro das letras sagradas resulte em sua falsificação, dirigida violentamente contra os mais fracos. Nem a humilhação da mulher, posta no meio do povo, no pátio do Templo; nem a santidade da Escritura, razão da vida daqueles Mestres, impediu que tudo fosse reduzido a uma ciranda de ódio e violência: acusar Jesus.

“Que dizes tu?”. Jesus não responde. Talvez, porque nem toda a clareza da Lei seja suficiente quando pronunciada sem reverência a Deus e sem amor às pessoas. Ou porque Jesus se recuse a uma pergunta em que a santidade de Deus e de sua Palavra, ou a dignidade das pessoas se tornaram apenas peças de uma maquinação, de um jogo de morte. Em vez de responder, o texto diz que Jesus escreve na areia. Estaria insinuando que o preceito da Lei, escrito na solidez das pedras do Sinai, era na verdade passageiro como o pó da terra? Ou ainda que o coração humano, formado da areia do chão e tocado pelo sopro de Deus, jamais poderia ser submetido ao simplismo de uma lei, sobretudo quando gritada por quem já se deixou cegar pelo ódio?

Jamais vamos saber… mas tudo isso é possível, pois a resposta que finalmente se faz ouvir não aponta para Lei, nem para a mulher caída no chão, mas para os acusadores: atire a primeira pedra quem não encontra em si mesmo razões para ser também apedrejado. A Lei tem uma medida: o ser humano para o qual ela existe. E o rigor de sua aplicação tem também uma medida: a fragilidade daqueles que julgam. Pois nisto réus e juízes são iguais: partilham da mesma frágil condição, da mesma pequenez humana, da mesma possibilidade de se equivocar. Ambos, em sua humanidade, dividem aquela fugacidade que por vezes nos entrega ao pecado, nos esconde na mentira ou mergulha no ódio, nos abandona na fraqueza e nos faz gemer na escuridão… Por isso, em vez de se porem em lados opostos de um tribunal, juiz e réu deveriam se unir em sincera fraternidade, auxiliando uns aos outros na retidão da vida – assim ensina Jesus.

Aos antigos cristãos, divididos pela dúvida de aceitar ou condenar seus irmãos que negaram a fé, esse texto ajudou a decidir pela misericórdia e pela acolhida, em vez da dureza das pedras. A nós, que quase finalizamos esta quaresma, quem sabe possa nos ensinar duas coisas. A primeira delas: “deixar para trás o passado e olhar para frente”, não arrastando com culpa desmedida os pecados de ontem, mas confiando-os à bondade de Deus, que em muito excede a nossa maldade. Nas palavras de Isaías, “coisas novas surgem diante de nossos olhos”, basta que as vejamos. E a mais nova delas, sempre escandalosa a nos surpreender, é o amor de um Deus que não guarda memória das chagas da cruz, mas devolve a dor e a humilhação em forma de cura e perdão. E a segunda: diante do pecado ou do erro de alguém, optarmos não pelo escândalo ou pela condenação que terminam por falsificar a Palavra de Deus e matar sua amada criatura. No fundo do pecado, mais que preceitos quebrados, estará sempre alguém com coração em pedaços, por vezes incapaz de ajuntar sozinho os cacos da própria vida. Em vez de apedrejar, quem sabe nos lembrássemos do pó de que também nós somos feitos, substituindo a frieza dos tribunais pelo abraço da fraternidade, em cujo calor se pode acreditar que é possível “ir e não mais pecar”.

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Por, Frei João Júnior ofmcap

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